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domingo, 20 de novembro de 2011

AS OBRAS VENCEDORAS DO CONCURSO LITERÁRIO VALORES DA NOSSA GENTE 2011

À partir de hoje, estaremos publicando as crônicas e poesias vencedoras do Concurso Literário Valores da Nossa Gente. Pra começar, publicamos duas crônicas que mereceram prêmios especiais de menção honrosa, pela sensibilidade e sentimento dos dois textos. Trata-se das crônicas HERANÇA DE JOÃO MONLEVADE, de Nadja Lírio e O SEMEADOR DE SONHOS, de Raphael Godoy. Não publicaremos tudo de uma vez, para dar tempo dos leitores se deliciarem com os textos, em doses homeopáticos. De qualquer maneira, ficamos muito felizes com o resultado e agradecemos a todos por terem atendido ao nosso chamado e participado. Em seguida, publicaremos as outras peças premiadas.

MENÇÃO HONROSA - HERANÇAS DE JOÃO MONLEVADE - NADJA LIRIO

-Vem, menina! Entra já pra dentro! – Gritava minha avó, sem notar o pleonasmo, da porta do alpendre. – Vem, que tá na hora da janta ! Mas, Nossa Senhora das Alma, olha a sua cor! Você tá pretinha de minério! Sangue de Jesus Cristo têm poder! – Nunca entendi porque, todas as noites ela ainda se surpreendia! Quem criou três filhas e uma neta do bairro Areia Preta, já devia ter se acostumado... depois de um dia de piques mil (pique pega, esconde, bandeira...) de branco mesmo, só se vêem os dentes. Não era coisa que desse pra evitar! Mesmo assim, toda noite, Dona Terezinha tinha que dizer o nome dos santos em vão! - Só mais dez minutinhos, vó! Por favor!!! – eu sempre tentava dissuadi-la, mas eu sabia que uma menina esquelética de cabelos emaranhados, pés descalços e preta de fuligem, não era lá a imagem pura com o apelo inocente necessário pra dobrar  vó Terezinha. – Nada disso! E depois de tomar banho, nem pensa em sair pra fora de novo! – com certeza,  o pleonasmo era a figura de linguagem predileta da vó.
Não tornei a insistir. Não naquele dia,  pois era aniversário do meu avô Carlos...a família Caldeira viria em peso e a turma da seresta alegraria a todos no quintal. Lalá no violão , Seu Cardoso do bandolim, Maria Jequiri, nossa Dalva de Oliveira,  seu Alípio no acordeom...Tio Gerson pegaria o tantã e entoaria sambas em infra-sons. Era um dia esperado, pra cantar com eles as canções de outros tempos. Tempos que não conheci.
 Minha mãe, me ensinou cada uma dessas canções, aos acordes do violão do vô quando, nas noites claras de sábado, pegávamos seis cadeiras, dois travesseiros e um cobertor, e íamos pro quintal. Eu deitava e ela tocava pra mim, à luz dos astros no céu. Mas naquele dia, além do violão, soariam bandolim, percussão, cavaco, acordeom . Eu juntaria minha voz a tantas outras, partilharia suas memórias e emoções, cantaria à memória do que eu não vivi e,o melhor de tudo,  havia empadinha de queijo da vó e torta de amendoim da Tia Stella .(a mesma torta por anos a fio, celebração após celebração, sem perder a delícia, nem o fascínio). O som logo encheria a casa e pintaria nos rostos sorrisos maiores.Hoje penso comigo que aqueles dias foram a semente da sina que hoje trago comigo, uma sina árdua e fascinante: a sina dos cantadores.
Tomei um banho quente de escaldar. Na porta do banheiro, minha vó já carregava nas mãos seu instrumento de tortura: a escova de cabelo.Sofria com aquilo. Primeiro, desembaraçar aos solavanos até os fios quase soltarem do couro cabeludo, depois , pentear pra trás bem rente e prender num rabo com uma força de rasgar os olhos e esticar a cara. Era minha vez de chamar em vão pelos santos.
Ao fim da tortura, já chegavam os convidados, e a casa se enfeitou de gente. Os cheiros, o burburinho...ainda posso senti-los...
 Esperei a roda se formar e me sentei ao lado da mãe. Afinaram os instrumentos e por um instante , que me pareceu longo demais, decidiram que música seria: As Pastorinhas!. Hoje me recordo que foi numa dessas noites de festa,  que ouvi a música de Noel pela primeira vez. “O último bilhete” era peça certa do repertório da trupe. Mal sabia eu, bebendo aqueles sons, que ao poeta daqueles versos dedicaria um tributo mais de quinze anos depois. Longe de obra do acaso, o efeito da memória e seus dedos a nos coçar a alma, sempre nos levam a caminhos familiares. Eu era uma criança e ignorava o presente se tornando memória, a me construir o caráter, o gosto, os sonhos.  Ignorava que a mesma luz que brincava no rosto de meu avô quando tocava com os amigos, luz ausente em dias comuns de senhor um pouco ranzinza, era a luz que aquecia meu peito naquelas noites e ainda o faz quando subo no palco. Ignorava também que aquelas reuniões esculpiriam no futuro minha noção ideal de família, o que me levou a embalar a minha ao som das mesmas raras melodias. Melodias para regar sorrisos fartos e a força frugal pra mantê-los em tempos árduos. Naquela noite a festa se estendeu na madrugada mas morreu bem antes do alvorecer. Há alguns anos Seu Cardoso se foi, e depois dele outros também. Alguns rostos, de tão remotos, me fogem à memória. Hoje me assola a saudade como o frio em ferida antiga. Mas ao passo que me dói, muito mais me afaga e inspira. Pois sei que ainda trago comigo o presente daqueles dias...
A música e o minério nos ossos,
Minhas asas e meus membros,
Minha luz e minha força...
Minhas heranças de João Monlevade.

MENÇÃO HONROSA - O SEMEADOR DE SONHOS - RAPHAEL GODOY

Era tudo uma questão de tempo. Ele já sabia disto desde o início. Ele não era um engenheiro, médico, administrador ou coisa do tipo. Talvez, tivesse no máximo o ensino fundamental completo. Mas, uma coisa era certa, ele tinha sonhos e os sonhos não precisam de muito para se tornar realidade. Coragem, fé e perseverança, são mais do que o suficiente para transformar qualquer desejo e conquista.
Assim foi com o Sr. Augusto, homem da terra, acostumado com a vida rural, habituado a acordar antes de todos e dormir junto com o sol. Não tinha muitos luxos ou caprichos, viveu mais de 90 anos, comendo feijão temperado com banha de porco e mais um monte de coisas que a medicina atual condena. Pouco, ou quase nada convive com ele. Mas seu chapéu panamá, sua bengala e o rosto marcado pelas suas vitórias se tornaram inesquecíveis para mim.
Augusto, apesar da idade, não era de falar sobre seus dissabores, suas dores, ou enchia a cabeça dos jovens e adultos com filosofias de quem já viveu o bastante para escrever um verdadeiro tratado sobre a vida. Ele era mais simples do que isto, e por isto mesmo se tornava imenso aos meus olhos. De todas as prosas que tinha a que mais gostava era das coisas de infância. Das brincadeiras com os irmãos e das surras que levava dos pais quando aprontava demais.
Mas ele era ainda mais do que isto. Como disse antes, Augusto era um sonhador. Em um de seus sonhos, viu em uma pequena cidade, um grande potencial. Com algum esforço, juntou algum dinheiro e comprou, aqui, em João Monlevade, um pedaço de terra, coisa pouca para os dias de hoje. Na época, Carneirinhos não podia ser chamado de bairro, tampouco de centro comercial. Mas, ali ele plantou a semente de seus sonhos.
Augusto não era Monlevadense, como muitos que contribuíram para o desenvolvimento de João Monlevade, ele também não morava por aqui, mas queria que os filhos não precisassem de trabalhar como ele trabalhou, ele desejava mais para eles. Assim, apostou alto que Monlevade cresceria, e cresceu.
Pouco tempo depois, se instalava no Centro Comercial, uma das mais tradicionais casas de confecção da cidade. Pouco falamos sobre isto, na verdade, ele mesmo nunca me contou isto. Fiquei sabendo por outras pessoas que tanto o admiravam. Mas, posso imaginar o quão feliz e realizado ele se sentia toda vez que via aquele comércio, que para ele era mais que isso, era a realização de um sonho.
E seu sonho deu frutos. Outras lojas foram se instalando aos poucos, e a cidade foi tomando corpo, aquela região que antes não era nada, passou a ser cada vez mais freqüentada, a cidade foi se urbanizando, saindo das dependências da indústria, saindo aos poucos do centro industrial, e ganhando sua independência. Por pouco não foi o pioneiro, mas investir em algo que ainda não existe, é dar um tiro em um alvo, iluminado apenas por um fio de luz chamado sonho.
Talvez, de todas as lições aprendidas com o velho Augusto, a mais importante, foi esta. Não foi uma lição falada, e sim uma demonstração clara de como podemos realizar aquilo que queremos.
Há dois anos, Augusto faleceu. Deixou para sua família, muito mais que um comércio, uma casa e um bom pedaço de terra. Deixou exemplos. Exemplos de lutas, de perseverança, de fé, de sonhos. Bom e velho Sr. Augusto.