Páginas

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A importância dos burros no cotidiano de Monlevade, em particular, a do chamado burro do Geo

Pessoal, trata-se do Capítulo 19  do livro Bazar Monlevade, do escritor Jairo de Souza, mais um "Valor da nossa gente". Boa leitura!

À partir destas linhas, peço uma especial atenção e mais vagar no revirar das folhas desses escritos. O leitor sabe que não vai encontrar diante dos seus olhos nenhum tipo de leitura que denuncie ser do gênero de fábula infantil. Não é nosso objetivo literário. Em nenhum momento anterior foi dada liberdade de voz a cavalo, Passarinho, andorinha, pato, cabrito, piaba, lambari…No entanto quem pode se esquecer do esforçado Burro do Geo? Senhores, por poucos momentos, a palavra fica, e durante todo o próximo parágrafo, a cargo do símbolo do trabalho físico monlevadense de algumas décadas atrás. O armazém do meu patrão ficava bem no meio da ladeira, lado esquerdo de uma carroça que sobe. Às suas costas a popular Praça do Mercado. Do lado direito via-se o imponente muro do Grupo Escolar que servia como contenção de enorme barranco. Lá se estuda para não ficar um burro como eu. Ambos, o armazém e o Grupo, ficavam na rua bem calçada que dava acesso à praça do cine Monlevade, a ladeira que disse. Nela, fosse eu seguindo até o ponto mais alto, entenda-se, onde ficava plana, estaria praticamente na Praça do Cinema. Que ficava logo à direita. Caso tivesse picado a mula, e prosseguido em linha reta daria com o cabresto na portaria principal da usina da Belgo-Mineira… Onde algum chapa aliviaria o meu lombo... Mas... Isso fica para depois, e para o memorialista que vos escreve… A ele, passo novamente o bastão. Jairo Martins de Souza Sim. E retorno dizendo novo elogio a você, seu burro! Poisnão somente em Monlevade como também em todo mundo, Vossas Senhorias, segundo os portugueses, eram os melhores topó- grafos e projetistas de estradas de rodagem. Manuel, solte aquele animal… Permita que faça a marcação da trilha com seus cascos,  e que determine, com sua intuição, o melhor ângulo de esforço para fazermos o traçado dessa lombada que fará parte da futura Monlevade a Belo Horizonte.Tempo distante em que o homem apreciava a inteligência dos burros: já estiveram em alto patamar da vida nacional. Conduziam as delícias do século dezoito. O Brasil recorda com saudade da carne salgada, o charque, trazida do Sul no tempo de Vila Rica. Não faz mal homenageá-los, e aos tropeiros, na figura doanimal monlevadense que há pouco esteve dando seu parecer sobre morro tradicional. Animal símbolo. Nosso el condor! Laborioso, o burro do Geo caminha por cada rua calçada, e cada beco de sua cidade. Conhece o ofício. Para tanto, oscilando a cabeça para cima e para baixo, busca força complementarpara tração das cargas encomendadas ao patrão. Está de saída encarando o morro que, forçosamente, terá que subir. Preocupado vê que ultimamente vem perdendo espaço para a força do progresso, cresce o número de caminhonetes postas a carreto em Monlevade. O pensamento não o aborrece por completo, poisconclui que tem vantagens para quem o emprega. Encara suas obrigações como se fosse uma missão. Faço tudo que me pedem a troco do pão e estou satisfeito, diz o burro. Confirmando a sua fala, faz um balanço de rabo. Como um cachorro.Ou como um padre que se alimenta das cortesias e oferendas alimentares dos seus fiéis: uma trança de lingüiça aqui, uma goiabada ali. Para o trabalho, e a vida, ambos carecem de alimento. O seu combustível. O burro, tal como o homem, é movido a combustão da sua máquina que arfa, e sua, e diz como o carroceiro que o conduz, p. que o pariu, essa carroça não anda! Com tamanho esforço, logo encontra o final do morro que o conduzirá à Praça do Cinema. A do cine Monlevade. Posto de lado pela natureza e pela evolução, o animal não teve a experiência com a sétima arte como ainda por ser descrita nesses escritos. Como também o refletir sobre a geometria das pedras do calçamento, ou imaginar novas equações para explicar o enigma das relações do número de ouro; enfim, coisas ligadas às proporções de Fibonacci. Andou, assanhado, falando nessas memórias... Mas é um simples burro... Que puxava na canga os mantimentos que o patrão tinha para fornecer aos moradores da cidade siderúrgica de João Monlevade. Entregamos em domicílio, não pode ficar de fora a Vila Tanque, ou a Rua da Favela, que é o foco das vossas atenções; é o que diz cerimoniosamente o seu proprietário. O meu empregado faz seu trabalho de formaexemplar. Como se fosse um carteiro que nunca desanima na entrega de uma carta de amor. Orgulhoso, complementa, é um funcionário padrão! Nem sempre foi assim, sou eu agora quem se pronuncia, em séculos passados não tinham tantas funções, embaraços e cangas. Desde criança podia vê-los em alguns presépios ou mesmo em quadros pintados durante a idade média, e que mostram, com graça e singela beleza, o nascimento do salvador. Das que vi, lá está o burrico observando, sossegado, o menino Jesus que dorme na rudimentar manjedoura. Mas pode ser que, depois disso, mais exatamente 33 anos, tenha ele, já mais velho, ou mesmo alguns dos seus descendentes mais burros que ele, sabe-se lá, filhos ou netos, tenham atirado pedras na cruz. Daí todos esses sofrimentos e cargas a conduzir nos dias de hoje. Não nos diz o Velho Testamento que a família paga por nossos pecados durante gerações e gerações? Fazia ainda dia escuro e já trabalhava. Vai devagar e, como é próprio da raça, empurrado pelos xingos do homem contratado: ‘vai burro, filho de uma égua!’. Mas tinha pai, não fora achado em lata de lixo. Pai que talvez tenha sido ajudado por mãos humanas na guia certa do seu bem dotado membro: não sei ao certo, o pai é um jumento de pasto vizinho ao que a mãe comia capim (ai, que coisas temos que aqui escrever!). Apesar disso, nada mais adequado que os xingos acima para trazer esse obreiro às lides do 130 Jairo Martins de Souza labor com entusiasmo. Faz mexer brios. Lembro que é proibido citar o nome da mãe de terceiros aqui na Vila Tanque: mesmo que seja de um burro. O condutor, consciente disso, tenta fazer outro tipo de incentivo ao trabalho e, assobiando, diz coisas que o animal entende. Com uma das mãos chicoteia o ar repetidas vezes e com os pés empurra o traseiro do bicho que sobressai entre couros e cordas de amarração. Os clássicos efeitos sonoros viajam pelos caminhos da cidade, tornando-se mais intensos na subida em curva do morro do tradicional armazém: as laterais muradas propiciam a formação de canal  de eco e de som que vão longe.Por final, recordo que a missão do tal burro não é novidade para nenhum dos nossos conterrâneos antigos. Todos o conhecem! Basta-nos recordar ser o protagonista de um ditado que ficou na história da cidade: “fulano trabalha muito, trabalha que nem o burro do Geo”. Foi uma verdadeira instituição local. Um monlevadense, há pouco saído dos solos da terra, disse-me: temos mesmo um jornal que se publica na cidade, chama-se Morro do Geo. Pensei comigo mesmo: bonito! Mas faltou fazer justiça ao burro... 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

5º LUGAR - CATEGORIA POESIA - ECLÉTICA

ECLÉTICA
Adriana Cristina Freitas

Nas lajes cinzentas,
o provinciano
Forjadas a golpes
De braço humano
Fundou bela vila
belga, americano
Pudera sonhar
O homem tropeiro
Com luzes no ar
Da mineirice, carneiro
Da riqueza, que foge
Poeira, faceira
De fortes mulheres,
Que a inércia queira
Balaios, bananas
Praças, operários
Virou carneirinhos
Rebanhos, erários
Suspiros, andanças,
Estrela ao luar
Santa Ernestina!
Chegou pra morar
Acima das luzes
O sorriso a encantar.

4º LUGAR CATEGORIA POESIA - ETERNAMENTE MONLEVADE

ETERNAMENTE MONLEVADE
Simone Cristina Vieira Sales

O que passou por essa terra em que me deito?
Corria pelo Papini e inocente e feliz, cresci!
Memórias de aconchego,
meio às montanhas
que me cercam
Tudo tão Monlevade! Foi o sonho do João?
Ouvia ele os pássaros que ainda cantam no meu quintal?
Via ele o céu beijando essas montanhas sob o sol?
E a paz percorrendo suavemente
os rostos dos filhos seus?
Que vem e vão e voltam,
pelas avenidas que lhes abrem os braços.
Lá, ao berço da usina, crescia esse lar
E o tempo passou...
Ficaram retratos dessa família,
nas paredes das nossas memórias.
Geo, Leiteria, Assistência, cinema, Ideal
Pessoas caras
 que as estações não levam embora, jamais!
Milhares de filhos do João.
Essa gente é de ferro, é de música, de raça
Alcântara, Klein, Tavinho, Randolfo da Câmara
Para mim foi ele quem gritou por nós:
" Independência ou Morte"
E eu, que nesse dia tão lindo, ainda nem sabia andar!
E tem o som da Banda Guarani. Nossa Banda!
Bandas dessas bandas, até Big Band!
Aqui é assim, gente construindo com as cores da alma
Cores vivas! Cores lindas! Do povo do Cruzeiro, Boa Vista,
Estrela Dalva, tantos outros e magnificamente Carneirinhos

3º LUGAR - CATEGORIA POESIA - AMOR TELÚRICO


AMOR TELÚRICO
Will Jony Gomes Nogueira

Outrora, dependente d’outro ela vinha,
Tornou-se tão bela e portentosa beldade..
E inefável amor por ti nunca se finda.
Sem nunca olvidar, és campo de liberdade.
Telurismo que aflora o nosso grande apego.
Laboriosa e de ímpar complexidade,
É nos braços das tuas montanhas qu’eu me aconchego,
Dileta e conspícua, em vultosa humildade.
Decanto aqui amor por homem ou mulher,
Aos corações que mui bem sabem acolher:
Alma cinza, alma verde, em tenacidade...
Sustentável em atos de seu bem-querer,
Não há outra qu’eu possa, sequer, escolher:
És todo o meu amor, salve João Monlevade!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

VAMOS NOS CONECTAR...

Você que está acessando o blog Valores da Nossa Gente pela primeira vez, perceberá que num primeiro momento vamos nos dedicar a publicar as poesias e contos vencedores do concurso de igual nome. Assim que publicarmos o conteúdo do livro do concurso, abriremos para novas poesias, novos autores, novas experiências. Outra coisa que faremos é disponibilizar para todos a revista/livro em formato power point. Em seguida, disponibilizaremos o livro anterior publicado há 10 anos atrás. O curioso dessa edição passada é que um dos vencedores na categoria conto foi o atual prefeito, Gustavo Prandini. Assim vamos resgatando um pouco das nossas  memórias literárias. Aproveito para convidar a todos a  ler, a comentar as poesias, a interagir conosco. Vamos nos conectar e resgatar o valor da palavra em nosso espaço cotidiano.

2° LUGAR - CATEGORIA POESIA - FUNDO DO BAÚ

FUNDO DO BAÚ
Afonso Torres da Silva


João Antônio e Clara Sophia na Solar
Plantaram sonhos de uma vida exemplar
Louis Ensch e sua Maria tomaram os sonhos
Pra si, edificando-os em realidade...

Os camponeses se fizeram operários
Removendo muita terra em lombo de burro
Sob a batuta do Maestro Burian
Uma sinfonia metálica se ouvia!

Picaretas, enxadas, pás, muito cimento
Martelo e prego, serra e plaina e madeira
Parafusos, porcas, ruelas e alicates
Confundiam-se em vários sons furiosos!

E a Fazenda Solar, quase adormecida
Se viu, então, toda rodeada de casas
Escolas, armazéns, clubes e hospital
Igreja, usina, chaminés e fumaça!
Cônego Higino e as Irmãs Holandesas
Se dividiam entre a fé e a educação...
Uma cultura européia no Hotel Cassino
Influenciava os "capiaus" da usina

E os meninos registrados em cartório
Do Sô Joanico e Dona Luzia de Melo
Levavam marmitas do almoço de seus pais
Ou buscavam leite e mingau no lactário.
Ayres Quaresma foi pra guerra e lá morreu
Cedendo seu nome pra Praça do Cinema:
Um conjunto arquitetônico com ares
De Praga, onde escola, clubes, banco e farmácia

Dividiam espaço com a rádio do Altino
Banca do "Baixinho", bares e o "Foto do Diló"
Neide Roberto e Jujú Alves encantavam
A frente da orquestra de Baile do Macedo...

Carnaval de blocos e concurso de fantasia
Festa junina com casamento na roça
Futebol de salão e até banda de rock
Tava lá Dona Conceição, mãe da Cora!

Hora dançante no Ideal ou União
Clube de Caça e Pesca, Grêmio e Social
Semana Santa: procissão e encenação
Mês de Maria - tempo de coroação!

Lá na Vila Tanque a quermesse e o futebol
Rolava solto no campo do Jacuí...
Padre Henrique foi educar em Carneirinhos
E Sô Nicácio construía na Areia Preta
Enquanto a banda subia o Morro do Geo
Mozart via seu pai do Bar do Daniel
Ali mesmo, na Siderúrgica, tinha hotéis
- Do Moacir, Do Civis e até mesmo a "Katanga"

Da Praça do Mercado saiam as carroças
Levando as “compras do mês” pra casa da gente
Todo mundo, ali, trabalhando "que nem burro"
Mas, unido e feliz, como uma grande família

Andando pelas ruas com nomes de índios
- Guaranis, Tocantins, Tietê, Carijós -
Afinado em só canto feito coral
Tão bem regido pelo Luciano Lima

E assim, seguia a vida de pequena vila
Que virou distrito e até mesmo se emancipou
Abrindo espaço pr’outros nomes, outras histórias
Futuros causos, fatos em discursos novos

O antigo bairro virou centro comercial
A cidade agora, é centro industrial
A " Nossa Belgo" virou ArcelorMittal
E o nosso povo sempre além do Bem e do Mal.

Apresentação - Prefeito Gustavo Prandini

A realização do Concurso Literário Prêmio Valores de Nossa Gente concretizou a proposta de incentivar e despertar o interesse e o gosto pela leitura e pela escrita em nossa cidade.

A participação de cronistas e poetas de nossa terra resultou em textos cheios de histórias de um calor humano tão intenso, que em determinados momentos acabou por extrapolar os princípios e formatos das categorias pretendidas.

São micro-histórias, descrições de tipos monlevadenses, memórias afetivas, sonhos e reminiscências que nos possibilitam desvendar um pouco do que são esses valores que permeiam as nossas vidas, a história de nosso povo.

No momento em que este livro, resultado do concurso, chega às mãos da nossa comunidade, registramos a nossa enorme alegria com o resultado da proposta.

Em nome da Prefeitura de João Monlevade e da Fundação Casa de Cultura, agradeço o empenho de todos e desejo uma ótima leitura de nossos poetas e escritores.

Agora é com vocês!

Abraço fraterno,

Gustavo Henrique Prandini de Assis
Prefeito de João Monlevade

1° LUGAR - CATEGORIA POESIA - DOCE MEMÓRIA


Rita de Cássia Abreu e Silva

Aquele que lá nasceu e por lá cresceu
Pode ouvir retretas ao romper da aurora
Andar de pés descalços no frescor do orvalho
Provar a brisa mansa que o vento ousou
Nas doces alvoradas das bandas d`outrora

Pode subir as lisas pedras lá do Geo
Sorver perfume intenso dos quitutes mil
Que a praça do mercado exalava inteira
Fazendo do lugar um pedaço do céu

Aquele que lá nasceu e por lá viveu
Pode matar a sede no Piracicaba
Colher fruta madura em qualquer quintal
Rodopiar atento em rodas de ciranda
E suspirar paixões em tantas madrugadas

Pode rezar baixinho em longas procissões
Serpentear as ruas, bairros e ladeiras
Também cumprir promessas dentro da igreja
E assim buscar em Deus alívio ao coração

Aquele que lá nasceu e por lá viveu
Pode presenciar a alma da cidade
Estremecer de dor diante do concreto
Que se elevou chocante, duro, imponente
Fazendo desaparecer pra sempre
Fração da história dessa Monlevade

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

SERIA TUDO UM SONHO? 5° LUGAR - CATEGORIA CONTOS

Maria do Rosário Pontes Figueiredo

    Estava sentada em um ônibus, indo para um lugar comum em um dia comum, para fazer algo que não tinha nada de especial.
    Não se lembra ao certo em que momento começou a pensar de uma maneira diferente, mas parecia mágica, pois assim que passou pelo "paredão" construído pela Usina, logo abaixo do "Zebrão", foi teletransportada no tempo.
    A sensação era muito estranha, pois tinha aparência atual, mas sabia que estava em uma outra década.
    Bastava olhar para todos os lados que percebia inúmeras coisas diferentes acontecendo por ali.
    Um cartaz chamou a sua atenção porque anunciava um "Festival de Música" no Grêmio Esportivo.
    Os carros também eram muito diferentes. Dava a impressão de estar em uma cidade muito pobre, pois o que mais se via pelas ruas era Fusca, Chevette, opala e até mesmo um Maverick, além de um Alfa Romeu que passou muito suntuoso, contornando a Praça do Cinema.
    É mesmo! O cinema estava ali, intacto! E os cartazes anunciavam filmes como "O Conde de Monte Cristo".
    Cada vez, ela ficava mais confusa, pois sabia que tinha saído de casa para trabalhar, numa terça-feira qualquer de agosto do ano de 2010.
    Passeou pela praça do cinema e viu um cartaz colado na porta do Ideal Clube, que anunciava um Baile do Havaí para o começo de setembro, e aí sim, levou um verdadeiro choque: Baile do Havaí "Data: 06 de setembro de 1979" "Horário: 22 horas..."
    Aquilo não podia estar acontecendo!
    Como poderia ter voltado no tempo daquele jeito?!
    Pensou em como iria para casa, aliás, uma boa pergunta. Onde seria a sua casa?
    Recordou que naquele ano deveria morar no Bairro Santa Bárbara e estaria estudando no Instituto Castro Alves.
    Ela pensou: "Acho que estou enlouquecendo! Como eu posso imaginar que vou encontrar a minha casa de mais de 30 anos atrás?"
    Era interessante porque bastava pensar em uma determinada coisa, que ela era teletransportada novamente, mas sempre naquele ano de 1979. Ou será que eram vários anos diferentes?
    De repente, ela se viu entrando em sua casa, e só então percebeu que ninguém conseguia mais vê-la realmente.
    As coisas estavam exatamente como eram naquela época e o mais surpreendente: ela estava ali também, diante dos seus próprios olhos, com aproximadamente 13 anos de idade. Aquilo era fabuloso!
    Meu Deus! Ela estava com aquele uniforme tão diferente do Instituto Castro Alves, em que a calça era cor de vinho.
    O coração ficou acelerado! Pensou: "será que vou rever meus amigos e os meus professores da escola também?"
    Mais uma vez, foi apenas pensar, para aparecer sentada na sua carteira, numa sala de aula de ciências.
    Ela não sabe ao certo quanto tempo passou porque era tudo tão interessante naquele lugar, mas quando deu por si, já estava se "vendo" conversando com alguns amigos no portão do Grêmio. Estavam esperando para assistirem a um show de "Marco Antônio Araújo e banda. Este show era orquestrado e foi muito especial.
    As coisas foram acontecendo simultanea-mente e, as vezes ficava difícil de entender se tudo não passava de um sonho.
    Era estranho observar os locais e imaginá-los tão diferentes.
    De repente, ao passar pelo final do bairro Santa Bárbara, lá estava a "Fazenda dos Bicalho", como ela era conhecida na época.
    Ela não acreditava, pois estava indo para o curso de "Corte e Costura" na antiga casa ao lado da fazenda. Aquela imagem era bem real, tanto que a "Dona Vera" já estava esperando na porta.
    Tudo estava intocável, como os bois no curral, alguns cavalos e muitas galinhas correndo no quintal.
    Ela não entendia como podia ir e vir, sem ao menos perceber.
    Alguém gritou o seu nome do outro lado da rua e ela se surpreendeu. Será que estão me vendo agora? Mas rapidamente percebeu que estavam conversando com ela mesma na sua frente. Ficou observando, pois era muito estranho ouvir a sua voz de 13 anos de idade. O amigo estava perguntando o que iria fazer naquele final de semana e ela simplesmente respondeu que ficaria em casa, porque no dia seguinte era o desfile de 7 de Setembro e que a escola dela iria participar desse desfile.
    Como tudo era tão surpreendentemente rápido, ela se viu na avenida vestindo uma roupa camponesa. Segurando um cesto de flores.
    Era tudo tão lindo! As fanfarras então eram maravilhosas. Todas as escolas estavam participando e havia centenas de pessoas aglomeradas na avenida para assistir ao desfile.
    O som das fanfarras ficou na cabeça dela por muito tempo. Tanto que nem percebeu que havia saído de lá.
    De repente, escutou um barulho enorme de carros e percebeu que estava esperando o sinal abrir para atravessar a Avenida Wilson Alvarenga, em frente ao "Centro Educacional". Foi quando percebeu a nova arquitetura da escola e só assim compreendeu que estava de volta ao ano de 2010.
    Será que foi um sonho?
    Ela colocou a mão no bolso para pegar um dinheiro porque estava comprando um picolé e, para sua surpresa, havia um pequeno papel de propaganda do show de "Marco Antônio Araújo e banda" e isso sim, ela pode dizer que não foi um sonho.
    Como foi possível?
    Ela nunca saberá!...

COLABORAÇÃO DO PROFESSOR DADINHO, UM DE NOSSO MAIORES INTELECTUAIS


    Quando aportou no Brasil em 1817 e fixou-se no então arraial de São Miguel do Piracicaba, Jean Antoine Félix Dissandes de Monlevade não imaginou, com toda a certeza, que estava pondo os pés numa terra que eternizaria seu nome como o ícone mais representativo de sua história. Não cogitou também que sua forja catalã, embrião da Belgo-Mineira, projetaria seu nome como pioneiro da indústria siderúrgica do Brasil, nem que seu magnífico Solar, atravessando os tempos, assistiria ao desabrochar de uma nova cidade.
    No entanto, testemunhou a movimentação de pequenos agricultores que, vestidos de branco, percorriam, quais pacatos carneirinhos, as colinas verdejantes das terras vizinhas de sua rústica fábrica de ferro, na faina diária de cultivar a terra e dela tirar o seu sustento. Ele mesmo, com sua fábrica, lhes fornecia pás, enxadas, serras, moendas e outras ferramentas de trabalho.
    Essa pequena forja, razão de ser de sua vida, não obstante as terríveis dificuldades para conduzi-la,  chegou a ser considerada a mais importante da Província. Somente após sua morte, ocorrida em 1872, a fábrica viveria certo fracasso, principalmente pela mudança contínua de administradores. No entanto, enquanto viveu Jean de Monlevade, ela foi o testemunho vivo de sua tenacidade e competência, valores legados à posteridade.
    Foi nas asas dessa tenacidade e competência que, cerca de um século depois, em 1927, outro engenheiro europeu, Louis Jacques Ensch, em missão da Arbed, então proprietária da Forja Catalã, do Solar e das antigas terras do Senhor de Monlevade, "ressurge o sonho dissandes, ressuscita jean félix, e o transforma em monlevade" . Foi por obra do Dr. Louis Ensch que aquelas sesmarias ganharam civilização e urbanismo, fazendo pulsar um coração humano naquele peito de aço que se erguera às margens do Piracicaba.
    Eis aí, em rápidas pinceladas, o quadro que confluiu na criação do distrito de João Monlevade, em 27 de dezembro de 1948, integrando numa só circunscrição administrativa as antigas terras do Senhor de Monlevade e as propriedades dos pacatos "carneirinhos", desanexadas do distrito-sede de Rio Piracicaba.
    Nesse novo distrito já se haviam instalado os Bicalhos, os Paula Santos, os Loureiros, os Gomes Lima, os Pereira Lima, os Martins, os Bragas, os Cândidos, além de outras famílias que para aqui vieram para se empregar na "Belgo", ou prestar serviços básicos à população, em franco crescimento.
    Despontam os anos sessenta. Cresce a população. Das forjas da Belgo-Mineira emerge operosa força sindical. Surgem os primeiros líderes políticos, desenvolve-se o comércio e a pequena indústria, e se aquece a construção civil: se havia uma cidade de fato, urgia fazê-la de direito. A Comissão Pró-emancipação une forças políticas e conquista, após muita luta, a emancipação política do município em 29 de abril de 1964.
    A emancipação abre as portas ao desenvolvimento: nascem novos bairros; cria-se a Acimon; instala-se a Cemig e a Telemig; a cidade ganha postos da Receita Federal e da Fazenda Estadual; instala-se o ensino técnico e superior; desenvolve-se a imprensa; intensificam-se as artes e a literatura; aumentam as opções de lazer; organiza-se a política partidária. É o povo traçando o seu próprio destino, fazendo a sua História.
    São novos tempos. A cidade guarda muito pouco das antigas sesmarias do Senhor de Monlevade, e os "carneirinhos" não mais pontilham de branco suas verdes colinas. O Solar Monlevade, testemunha silenciosa da história, viu espalhar-se através da topografia irregular de suas terras o casario numeroso, marcado pelas Avenidas Getúlio Vargas, Wilson Alvarenga, Armando Fajardo e Alberto Lima, os novos caminhos do progresso e do desenvolvimento.
    Consolidada a interação do Executivo e Legislativo, faltava à cidade a plenificação do poder civil através do poder Judiciário: a Comarca, criada em 15 de novembro de 1975, é instalada em 1979.
    A cidade ganha prestígio regional: torna-se sede da Amepi. Sintonizada com os novos tempos, a iniciativa privada se desenvolve e investe no município: surgem empresas de prestação de serviços, clínicas, escolas, instituições esportivas e culturais. Consolida-se o ensino superior com a extensão da Ufop e o campus avançado da Uemg.
    O povo, com cultura e tradições próprias, projeta sua identidade nas novas gerações, produzindo líderes e mentores, que se destacam no comércio, empresas, saúde, educação, administração pública, esportes, religião, literatura, artes e política. É a cidade que cresce, solidifica-se e se eterniza.

Este texto encomendado ao Professor Dadinho, contextualiza historicamente a cidade de João Monlevade e traduz a sua importancia. Sua participação enriqueceu e muito o Concurso "Valores da nossa gente". 

terça-feira, 30 de novembro de 2010

4° lugar - Categoria conto - Calcanhar cosido - à sua benção, D.Maria !

Calcanhar cosido - à sua benção, D.Maria !

Maria Gláucia Drumond Alvarenga



    Caí do alto da laje de minha casa, aqui em João Monlevade, em 2007 e, pela primeira vez, fraturei um pedacinho de mim: o calcanhar direito. Com dificuldade, levaram-me para a cama e, eis que surge ela, moradora primeira de meu bairro, a minha vizinha espertinha, de olhar sempre corajoso e amigo, carregando consigo, além de seus mais de oitenta anos, um novelo de linha, uma agulha, um retalho e uma panelinha de ferro. Confesso que passou minha cabeça que talvez ficasse comigo, naquele momento, como companhia e, sabendo de suas habilidades manuais, desenvolvidas periodicamente no SESI, junto ao Grupo da Terceira Idade, imaginei que faria um daqueles seus trabalhos, enquanto me concederia a honra de tê-la por perto.
    Sentia uma pontada de vergonha em falar de dor diante de uma criatura que já me havia narrado alguns de seus sofrimentos, como por exemplo, quando sentia em seu próprio estômago a fome dos filhos, órfãos de pai e, dizia-me, com um olhar firme e distante, que nem por isso cruzava os braços ou os estendia para receber esmolas. Fazia de suas mãos e da força a ela concedida por Deus, naquela época tão difícil, os seus instrumentos de luta. Assim as migalhas de pão conseguidas em seu árduo trabalho foram tapeando as barriguinhas vazias de seus seis meninos pequenos, por longos anos.
    D. Maria não se intimidou: sentou-se ao meu lado, me disse que coseria meu pé para que ele melhorasse, mas não garantia que eu não precisasse de um médico. -"É só Nosso Senhor que sabe, né minha filha?"- disse, calmamente. Esquentou, ela mesma, a água na panelinha de ferro que trouxe e, após poucos minutos, retirou-as do fogo no ponto morno. Pronto. Começou a coser. Ela me explicou direitinho que, quando iniciasse aquele ritual (palavra assim traduzida aqui por mim), sempre ao me perguntar alguma coisa, eu deveria dizer.-"Carne quebrada, nervo rendido, osso partido."
    Então, veio a primeira pergunta, bem ligeira, de sua boca:- "Que é que eu benzo?" E eu, atônita, a cabeça zoada e ainda perplexa com o tombo e a presença de um anjo da guarda enviado pelas vozes dos meus ancestrais africanos, pedi que ensinasse novamente os dizeres. Bem baixinho, pronunciei: "Carne quebrada, nervo rendido, osso partido", o que por três vezes repeti, durante o cosimento. Enquanto isso, ela movimentava a agulha no novelo e, ao final de cada fala minha, rezava o Pai-Nosso com um dialeto que me fazia lembra vocábulos já ouvidos em apresentações de congados e na convivência com outras pessoas que, quando eu era ainda criança, freqüentavam a casa de meus avós.
    A água morna chegou na panelinha de ferro. D. Maria, sem temer dor de queimadura, jogou seu retalho dentro dela, esperou um pouquinho e, de lá, o retirou. Torceu o pano molhado, colocou-o em meu tornozelo, entortou a cabecinha (agora já de pé, olhou, espiou, espiou, examinou e falou:-"Cusê tá cusido, vamo vê!"
    Ela me deu um tchauzinho, fui... e voltei para a casa com gesso até próximo ao joelho. Por sete dias, D. Maria subiu, religiosamente, uma escadaria danada de minha casa, espertinha como ela era e eu, bem sapeca, pulando de muletas, aguardava a sua mágica presença. Continuou a coser meu calcanhar, em cima do gesso, sem se esquecer de nenhum de seus apetrechos: a panelinha de ferro e o retalho, que agora só compunham o cenário do ritual, deixados em repouso na cabeceira de minha cama, o novelo de linha e a agulha, estes sim, que se remexiam diante as palavras e o vigor de minha adorável vizinha.
    Agora, éramos nós dois a admirá-la, boquiabertos: meu filho e eu. Enquanto ela cosia, eu aproveitava para observar as suas mãos, tão calejadas e enrugadas pelo tempo, o seu esguio corpo de quem muitas atividades físicas já fizera na sua existência, a sua tez negra, o que lhe dava ainda mais um toque de desprendimento e serenidade... eu me sentia muito, muito protegida.
    Entendia agora que a cura para todos os ferimentos de nossos tropeços neste mundo poderiam ser costurados, sem mesmo deixar nenhuma cicatriz na trajetória nem sempre possível de nossas vidas!

3° LUGAR CATEGORIA CONTOS - DONA MARIETA - TEM UMA LATINHA AÍ, MOÇO?

DONA MARIETA - TEM UMA LATINHA AÍ, MOÇO?

Sheila Virgínia Alonso Cordeiro Malta

    Dias desses, lembrei-me de uma figura querida de nossa João Monlevade, que há pouco tempo se foi: D. Marieta.
    Figurinha ímpar, com seu cabelinho arrumado, fala mansa, passo ligeiro e sempre com a mesma pergunta: Tem latinha aí moço?
    Dona Marieta, a quem muitos assim a chamavam, não sei se carinhosamente (eu pessoalmente nunca soube se este realmente era seu nome.) Apenas acostumei como todos, a percebê-la e com ela conviver pelas ruas da cidade.
    Seu estilo era inconfundível, eis que por trás daquela aparência frágil, de uma velha senhora, para alguns inútil, para outros coitada, para tantos uma "louca" e para muitos um exemplo, escondia-se uma mulher que realmente à sua maneira, soube viver, sendo inclusive, motivo de orgulho e disposição (quanta disposição!). Dava "banho" em marmanjos e moçoilas...
    E aquele olhar, o sorriso tímido, a pele demonstrando "anos de experiência"...
    Certa feita voltava eu de meu trabalho, quando deparei-me com referida senhora, a qual me abordou e questionou:
    -Ei mocinha? Tem uma latinha aí?
    A que respondi:
    -Sim, creio que sim, entregando-lhe logo após o tão estimado objeto.
    Executada a tarefa, saiu a nossa heroína, atravessou a rua, cumprimentando e sendo cumprimentada por alguns, inobservada por outros e causando até mesmo "certa inveja" em muitos (seu fôlego era incrível! Andava o dia inteiro...)
    Para minha surpresa, eis que a cena anteriormente narrada se desenvolveu durante o percurso entre minha casa e o meu local de trabalho, os quais são bastante próximos, nossa personagem parou junto ao ponto de ônibus, no momento em que  justamente parava  a linha de nº 12, sentido Sta. Bárbara - CSBM.
    E não é que a "mocinha" entrou nele? Dei uma leve risada e pensei comigo: Forrozeira. rsrsrs"
    No outro dia, triste notícia:
    "Uma senhora foi atropelada na av. Wilson Alvarenga, próximo ao posto Barrocar. Identificada como fulana de tal, mais conhecida como D. Marieta (...)"
    Nossa! Foi como um balde de água fria.
Como assim? Pensei.
    Naquele dia, o dia realmente me pareceu cinza...
    Impressionante como nós seres humanos somos né?! Infelizmente aprendemos uma cultura de valorizar mortos, e nos esquecermos dos vivos... Ou somos todos, sem exceção, talvez egoístas ou distraídos demais, para interpretarmos e entendermos realmente  a famosa frase: " A morte de alguém nos diminui."?!
    Passaram-se os dias, as semanas, os meses...
    Não sei, mas sabe quando sente-se falta de alguém pelo simples fato de que esta pessoa tornava seu cotidiano mais agradável? Ainda que fosse uma pessoa aparentemente desconhecida, sem qualquer laço de parentesco?
    Após estes fatos, leitor, sempre me questiono:
    Onde estão nossas Marietas? Seria ela a única?
    Esta pergunta, levanta uma série de repostas, em sua maioria altamente subjetivas, como se espera de todas as respostas...
    Só sei que, ao fazer minha rota diária (casa-trabalho), como se por força do hábito ou mesmo um costume natural, fito por alguns segundos os pontos de ônibus e imaginariamente ainda consigo ver:
    "Ei moço? Tem uma latinha aí?"
    Dona Marieta ( à direita) com o prefeito Gustavo Prandini, poucos dias antes 
de nos deixar.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2° LUGAR - CONTOS - TÁ CAINDO FULÔ...DO CÉU TÁ CAINDO FULÔ


TÁ CAINDO FULÔ...DO CÉU TÁ CAINDO FULÔ
Maria Helena da Silva Campos Cruz


    Era um dia sombrio. Cinza.
    Eu com a dificuldade em caminhar pedi que me levassem até lá em cima, no Cemitério de Carneirinhos para um último adeus a uma pessoa que era um verdadeiro Patrimônio em nossa cidade que era Dona Tereza do Congado.
Coloquei-me à frente do portão e fiquei junto com outras pessoas aguardando a chegada do cortejo.
    Cheguei aqui, em Monlevade, em junho de 1976. Por vezes me sentia, por estar tão longe de minha família: abandonada, desanimada, perseguida, amuada ou humilhada em meu trabalho e uma vez me aconselharam a procurar por Dona Tereza para ela rezar para mim. Eu ia eu meio que acreditando/desacreditando. Só sei que saia de lá mais mais leve e restaurada. Sua casa me parecia um lugar muito especial, único. Quando pequenininha em São Mateus/ES tive a oportunidade de conhecer algumas pessoas maravilhosas que rezavam meus irmãos menores e, por vezes, à madrugada acordávamos com os tambores tocando, meu pai dizia que era Caxambu, desde então, isso me fascinava.
    Fiquei encantada quando vi um grupo de congado, pela primeira vez, indo para a igreja celebrar a festa de Nossa Senhora do Rosário.
    Sempre, portanto, admirei a cultura Africana com seus mistérios, tradições e rituais.
    O Congado era uma forma de respeitar e me reconhecer na maravilha dos espelhos, fitas, espadas, fardas, nas coroas de reis e rainhas, nas músicas e danças que mexiam com meus olhos e me levavam a viajar por mundos paralelos sem vontade de voltar. Estava envolvida com minhas lembranças e devaneios quando alguém me alertou. E apontando na Avenida Getúlio Vargas, na contramão, completamente tomada pelo congado, acredito que cerca de três grupos, evoluíam em homenagem à Rainha que retornava ao jardim das delícias. Descrever o que senti, impossível. À medida que o cortejo se aproximava as lágrimas suaves num misto de tristeza, transcedência, elevação, sabe lá, ia tomando conta de mim, que me envolvia cada vez mais com os sons e movimentos, parecendo que meu coração acompanhava o ritmo que se assenhoreava de mim.
    Desde o comércio do "Pedro Machado" já se entendia o que cantavam " Tá caindo Fulô"...
    O cortejo chegou com centenas de pessoas. O céu permanecia nublado e fazia um pouco de calor.
    Na entrada do cemitério, como de costume, a urna foi depositada e aberta para um derradeiro adeus. Aí aconteceu algo que poucos perceberam e que a mim me marcou para sempre.
    "A Guarda de Marujos (marujada) cantava e dançava:
                                           Tá caindo fulô, eh eh
                                           Tá caindo fulo, eh ah
                                           Lá do céu, cai na terra, eh
                                           Tá caindo fulô."
    Por um instante singular as nuvens se abriram, só uma brechinha de nada e deixaram escapar, timidamente, um raio de luz que repousou sobre o rosto de dona Tereza, a emoção que eu já sentia, explodiu!
    Confesso que chorei.
    Chorei como gente grande, com soluços e tudo a ponto de ser consolada.
    A música continuava:
                                     " Tá caindo fulo, eh eh
                                       Tá caindo fulo, eh ah
                     Lá do céu, cai na terra, eh
                     Tá caindo fulo"...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PRIMEIRO LUGAR - CATEGORIA CONTOS - A VILA TECIDA EM PERSONAGENS


A VILA TECIDA EM PERSONAGENS
Marcelo Manuel de Melo

Era madrugada de inverno. Naquela época, fim dos anos 1950, a maioria dos bebês nascia das mãos das parteiras. Minha geração veio daquela senhora que morava vizinha, no bairro Areia Preta, chamada Carmem, um nome forte: dona "Carmem Parteira". Na casa simples da esquina entre a Contorno e a rua 10. Bairro Vila Tanque. A Vila dos Operários. Meu pai, metalúrgico da Usina da Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira. Minha mãe, além de dona de casa, tinha uma pequena máquina que cobria botões e lembro, ainda menino, das várias "madames" da avenida Aeroporto que iam lá em casa, levando lindos vestidos, para que fossem colocados os botões. Era um tempo onde era pública a divisão de classes sociais, entre a chefia e os operários comuns. No Social Clube, por exemplo, só entravam os "gringos". Preto, nem pensar!   E ali cresci, junto aos meus pais e meus irmãos. Pouco antes de completar sete anos e ingressar na 1ª escola - Eugênia Scharlé (nome de uma das madames e esposa de um chefão da Usina), meu pai conseguiu uma casa maior. Naquele período a Usina iniciava a sua política de dar fim ao paternalismo implantado desde a instalação da Belgo-Mineira em João Monlevade, ou seja, tornar o seu operário parte da sociedade e não da Usina. As casas eram vendidas em largas parcelas aos empregados e assim era rompido o primeiro laço umbilical. A nova morada era a parte baixa do bairro, à rua 25. E ali começava uma nova escalada, sem imaginar que a Vila, nascida de um tanque localizado à rua do "Sapo" (21), teria uma cumplicidade tão intensa na vida deste escrevinhador.   O Vila Tanque se tornaria um símbolo e a cada esquina ele tecia os seus personagens. Como naquela música "Na Asa do Vento", de autoria de João do Vale e que se eternizou na voz de Caetano Veloso: "a aranha tece puxando o fio da teia, a ciência da abeia, da aranha e a minha, muita gente desconhece"... Era como se a Vila fosse única, entre seus habitantes e suas moradas de alvenaria e madeira. E seus personagens sendo tecidos artesanalmente. E eu, olhar de menino, orgulhava-me por conviver com aquelas pessoas, folclóricas. Importantes, cada qual ao seu estilo e às suas raízes. Um universo novo. Um deles marcou a minha adolescência. Era o velho "Zé Liga". Todos o conheciam assim. O personagem da Contorno com a rua 11, artista/criador do "Grêmio Recreativo Escola de Samba Estrela da Vila". E sua obra o imortalizou. Quando a Estrela da Vila passava pelas estreitas ruas da Vila, parávamos com um olhar meio assustado e outro meio emocionado. As fantasias e o famoso "índio" puxando a bateria. Como diria Chico Buarque "vai passar pela avenida um samba popular. Cada paralelepípedo dessa velha cidade hoje vai se arrepiar"... E a Estrela fazia tremer as ruas da Vila. Um botijão de gás tocado como se fosse um surdo de metal e à frente desfilava Zé Liga, homem alegre e gordo, como o rei daquela festa encantada.   E, entre tantos outros personagens da Vila, retornei à minha infância e vi duas senhoras. A primeira era a baixinha, de cabelos sempre presos, que descia lá do alto da Contorno para ir à minha casa prosear com Dona Geralda. Era Dona Joaquina. Uma velha alegre, comunicativa. Uma simplicidade de gente do interior, mas de grande sabedoria. E a teia ia se formando.  A outra, Dona Adelina, minha querida madrinha, esposa do "Padrin" Narciso, bombeiro do Hospital Margarida. Ninguém cozinhava como ela. Qualquer coisa que aquela mestiça colocava no fogo se transformava em manjar. Que fossem arroz e feijão, mas tinha um sabor de fogão à lenha, um tempero apimentado. E comia com as mãos, o velho "capitão". A vida ia tecendo os personagens da história.  Dali, do alpendre da casa da rua 25, de frente para os eucaliptos, começo minha viagem pelo Campin Pereira. Depois, pelo campo da Lenheira, do caminho da Sonda, da esquina da 22, do Polivalente, do campo de Aviação, da Escola de Admissão de Dona Petiche, do Atletic de Zezinho, do Vila Nova de Zé Soldado, da barbearia do Senhor Bramante, do velho Palanque, de Padre Hildebrando, das Casas Sampaio e Pessoa, de Dilcim Doido, do Bar do Alonso, de Zim Navaia, do bar de Dona Nenén e Seu Altivo, de Tatu e Testão, do Recreativo e das horas-dançantes, do táxi de Manoel Paciência, do caminho da Sinterização e dos boieiros que desciam para levar as marmitas aos operários da Usina.  Cresci, tornei-me moço grande e as calças curtas ficaram para trás. Mas permanece essa cumplicidade entre a Vila Tanque e o escrevinhador, cujas retas são paralelas, mas que se curvam ao final.

sábado, 9 de outubro de 2010

PONTA PÉ INICIAL...

Amigos, o objetivo deste blog é promover o diálogo entre os agentes literários de João Monlevade, divulgando nossos autores, nossas histórias, nossa cultura. Neste sentido, estaremos à partir de agora publicando aqui os trabalhos vencedores do  Concurso Literário "Valores da nossa Gente" que aconteceu em agosto, mas cuja temática não se esgota. O Concurso suscitou uma série de reflexões sobre nossas raízes profundas, sobre as pessoas, tanto as pioneiras com as comuns, sobre o que foi a cidade e sobre a urgência do progresso que soterra parte das paisagens que nos eram tão caras , sobre tempos que só voltam através da máquina do tempo que  é nosso  prodigioso cérebro, capaz de arquivar nossas afetividades, sobretudo sobre o amor a essa terra tão sagrada para todos nós. Neste blog vamos disponibilizar  também trabalhos de outros autores que não participaram do concurso mas que tem livros publicados,  outros polaroids, olhares também importantes para nos ajudar a  nos entender. Então é isso. Em breve, muito breve mesmo, publicaremos a poesia vencedora do Jornalista e poeta Marcelo Melo. Aguardem...e os poetas também poderão nos enviar os seus trabalhos, que publicaremos sempre que houver espaço, ok?