-Vem, menina! Entra já pra dentro! – Gritava minha avó, sem notar o pleonasmo, da porta do alpendre. – Vem, que tá na hora da janta ! Mas, Nossa Senhora das Alma, olha a sua cor! Você tá pretinha de minério! Sangue de Jesus Cristo têm poder! – Nunca entendi porque, todas as noites ela ainda se surpreendia! Quem criou três filhas e uma neta do bairro Areia Preta, já devia ter se acostumado... depois de um dia de piques mil (pique pega, esconde, bandeira...) de branco mesmo, só se vêem os dentes. Não era coisa que desse pra evitar! Mesmo assim, toda noite, Dona Terezinha tinha que dizer o nome dos santos em vão! - Só mais dez minutinhos, vó! Por favor!!! – eu sempre tentava dissuadi-la, mas eu sabia que uma menina esquelética de cabelos emaranhados, pés descalços e preta de fuligem, não era lá a imagem pura com o apelo inocente necessário pra dobrar vó Terezinha. – Nada disso! E depois de tomar banho, nem pensa em sair pra fora de novo! – com certeza, o pleonasmo era a figura de linguagem predileta da vó.
Não tornei a insistir. Não naquele dia, pois era aniversário do meu avô Carlos...a família Caldeira viria em peso e a turma da seresta alegraria a todos no quintal. Lalá no violão , Seu Cardoso do bandolim, Maria Jequiri, nossa Dalva de Oliveira, seu Alípio no acordeom...Tio Gerson pegaria o tantã e entoaria sambas em infra-sons. Era um dia esperado, pra cantar com eles as canções de outros tempos. Tempos que não conheci.
Minha mãe, me ensinou cada uma dessas canções, aos acordes do violão do vô quando, nas noites claras de sábado, pegávamos seis cadeiras, dois travesseiros e um cobertor, e íamos pro quintal. Eu deitava e ela tocava pra mim, à luz dos astros no céu. Mas naquele dia, além do violão, soariam bandolim, percussão, cavaco, acordeom . Eu juntaria minha voz a tantas outras, partilharia suas memórias e emoções, cantaria à memória do que eu não vivi e,o melhor de tudo, havia empadinha de queijo da vó e torta de amendoim da Tia Stella .(a mesma torta por anos a fio, celebração após celebração, sem perder a delícia, nem o fascínio). O som logo encheria a casa e pintaria nos rostos sorrisos maiores.Hoje penso comigo que aqueles dias foram a semente da sina que hoje trago comigo, uma sina árdua e fascinante: a sina dos cantadores.
Tomei um banho quente de escaldar. Na porta do banheiro, minha vó já carregava nas mãos seu instrumento de tortura: a escova de cabelo.Sofria com aquilo. Primeiro, desembaraçar aos solavanos até os fios quase soltarem do couro cabeludo, depois , pentear pra trás bem rente e prender num rabo com uma força de rasgar os olhos e esticar a cara. Era minha vez de chamar em vão pelos santos.
Ao fim da tortura, já chegavam os convidados, e a casa se enfeitou de gente. Os cheiros, o burburinho...ainda posso senti-los...
Esperei a roda se formar e me sentei ao lado da mãe. Afinaram os instrumentos e por um instante , que me pareceu longo demais, decidiram que música seria: As Pastorinhas!. Hoje me recordo que foi numa dessas noites de festa, que ouvi a música de Noel pela primeira vez. “O último bilhete” era peça certa do repertório da trupe. Mal sabia eu, bebendo aqueles sons, que ao poeta daqueles versos dedicaria um tributo mais de quinze anos depois. Longe de obra do acaso, o efeito da memória e seus dedos a nos coçar a alma, sempre nos levam a caminhos familiares. Eu era uma criança e ignorava o presente se tornando memória, a me construir o caráter, o gosto, os sonhos. Ignorava que a mesma luz que brincava no rosto de meu avô quando tocava com os amigos, luz ausente em dias comuns de senhor um pouco ranzinza, era a luz que aquecia meu peito naquelas noites e ainda o faz quando subo no palco. Ignorava também que aquelas reuniões esculpiriam no futuro minha noção ideal de família, o que me levou a embalar a minha ao som das mesmas raras melodias. Melodias para regar sorrisos fartos e a força frugal pra mantê-los em tempos árduos. Naquela noite a festa se estendeu na madrugada mas morreu bem antes do alvorecer. Há alguns anos Seu Cardoso se foi, e depois dele outros também. Alguns rostos, de tão remotos, me fogem à memória. Hoje me assola a saudade como o frio em ferida antiga. Mas ao passo que me dói, muito mais me afaga e inspira. Pois sei que ainda trago comigo o presente daqueles dias...
A música e o minério nos ossos,
Minhas asas e meus membros,
Minha luz e minha força...
Minhas heranças de João Monlevade.
Beleza de crõnica.Fez-me vpoltar ao passado;porque também eu fui criada em meio das serestas,de Nelson Gonçalves.Caetola e tantos outros.PARABÉNS .
ResponderExcluir