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terça-feira, 30 de novembro de 2010

4° lugar - Categoria conto - Calcanhar cosido - à sua benção, D.Maria !

Calcanhar cosido - à sua benção, D.Maria !

Maria Gláucia Drumond Alvarenga



    Caí do alto da laje de minha casa, aqui em João Monlevade, em 2007 e, pela primeira vez, fraturei um pedacinho de mim: o calcanhar direito. Com dificuldade, levaram-me para a cama e, eis que surge ela, moradora primeira de meu bairro, a minha vizinha espertinha, de olhar sempre corajoso e amigo, carregando consigo, além de seus mais de oitenta anos, um novelo de linha, uma agulha, um retalho e uma panelinha de ferro. Confesso que passou minha cabeça que talvez ficasse comigo, naquele momento, como companhia e, sabendo de suas habilidades manuais, desenvolvidas periodicamente no SESI, junto ao Grupo da Terceira Idade, imaginei que faria um daqueles seus trabalhos, enquanto me concederia a honra de tê-la por perto.
    Sentia uma pontada de vergonha em falar de dor diante de uma criatura que já me havia narrado alguns de seus sofrimentos, como por exemplo, quando sentia em seu próprio estômago a fome dos filhos, órfãos de pai e, dizia-me, com um olhar firme e distante, que nem por isso cruzava os braços ou os estendia para receber esmolas. Fazia de suas mãos e da força a ela concedida por Deus, naquela época tão difícil, os seus instrumentos de luta. Assim as migalhas de pão conseguidas em seu árduo trabalho foram tapeando as barriguinhas vazias de seus seis meninos pequenos, por longos anos.
    D. Maria não se intimidou: sentou-se ao meu lado, me disse que coseria meu pé para que ele melhorasse, mas não garantia que eu não precisasse de um médico. -"É só Nosso Senhor que sabe, né minha filha?"- disse, calmamente. Esquentou, ela mesma, a água na panelinha de ferro que trouxe e, após poucos minutos, retirou-as do fogo no ponto morno. Pronto. Começou a coser. Ela me explicou direitinho que, quando iniciasse aquele ritual (palavra assim traduzida aqui por mim), sempre ao me perguntar alguma coisa, eu deveria dizer.-"Carne quebrada, nervo rendido, osso partido."
    Então, veio a primeira pergunta, bem ligeira, de sua boca:- "Que é que eu benzo?" E eu, atônita, a cabeça zoada e ainda perplexa com o tombo e a presença de um anjo da guarda enviado pelas vozes dos meus ancestrais africanos, pedi que ensinasse novamente os dizeres. Bem baixinho, pronunciei: "Carne quebrada, nervo rendido, osso partido", o que por três vezes repeti, durante o cosimento. Enquanto isso, ela movimentava a agulha no novelo e, ao final de cada fala minha, rezava o Pai-Nosso com um dialeto que me fazia lembra vocábulos já ouvidos em apresentações de congados e na convivência com outras pessoas que, quando eu era ainda criança, freqüentavam a casa de meus avós.
    A água morna chegou na panelinha de ferro. D. Maria, sem temer dor de queimadura, jogou seu retalho dentro dela, esperou um pouquinho e, de lá, o retirou. Torceu o pano molhado, colocou-o em meu tornozelo, entortou a cabecinha (agora já de pé, olhou, espiou, espiou, examinou e falou:-"Cusê tá cusido, vamo vê!"
    Ela me deu um tchauzinho, fui... e voltei para a casa com gesso até próximo ao joelho. Por sete dias, D. Maria subiu, religiosamente, uma escadaria danada de minha casa, espertinha como ela era e eu, bem sapeca, pulando de muletas, aguardava a sua mágica presença. Continuou a coser meu calcanhar, em cima do gesso, sem se esquecer de nenhum de seus apetrechos: a panelinha de ferro e o retalho, que agora só compunham o cenário do ritual, deixados em repouso na cabeceira de minha cama, o novelo de linha e a agulha, estes sim, que se remexiam diante as palavras e o vigor de minha adorável vizinha.
    Agora, éramos nós dois a admirá-la, boquiabertos: meu filho e eu. Enquanto ela cosia, eu aproveitava para observar as suas mãos, tão calejadas e enrugadas pelo tempo, o seu esguio corpo de quem muitas atividades físicas já fizera na sua existência, a sua tez negra, o que lhe dava ainda mais um toque de desprendimento e serenidade... eu me sentia muito, muito protegida.
    Entendia agora que a cura para todos os ferimentos de nossos tropeços neste mundo poderiam ser costurados, sem mesmo deixar nenhuma cicatriz na trajetória nem sempre possível de nossas vidas!

3° LUGAR CATEGORIA CONTOS - DONA MARIETA - TEM UMA LATINHA AÍ, MOÇO?

DONA MARIETA - TEM UMA LATINHA AÍ, MOÇO?

Sheila Virgínia Alonso Cordeiro Malta

    Dias desses, lembrei-me de uma figura querida de nossa João Monlevade, que há pouco tempo se foi: D. Marieta.
    Figurinha ímpar, com seu cabelinho arrumado, fala mansa, passo ligeiro e sempre com a mesma pergunta: Tem latinha aí moço?
    Dona Marieta, a quem muitos assim a chamavam, não sei se carinhosamente (eu pessoalmente nunca soube se este realmente era seu nome.) Apenas acostumei como todos, a percebê-la e com ela conviver pelas ruas da cidade.
    Seu estilo era inconfundível, eis que por trás daquela aparência frágil, de uma velha senhora, para alguns inútil, para outros coitada, para tantos uma "louca" e para muitos um exemplo, escondia-se uma mulher que realmente à sua maneira, soube viver, sendo inclusive, motivo de orgulho e disposição (quanta disposição!). Dava "banho" em marmanjos e moçoilas...
    E aquele olhar, o sorriso tímido, a pele demonstrando "anos de experiência"...
    Certa feita voltava eu de meu trabalho, quando deparei-me com referida senhora, a qual me abordou e questionou:
    -Ei mocinha? Tem uma latinha aí?
    A que respondi:
    -Sim, creio que sim, entregando-lhe logo após o tão estimado objeto.
    Executada a tarefa, saiu a nossa heroína, atravessou a rua, cumprimentando e sendo cumprimentada por alguns, inobservada por outros e causando até mesmo "certa inveja" em muitos (seu fôlego era incrível! Andava o dia inteiro...)
    Para minha surpresa, eis que a cena anteriormente narrada se desenvolveu durante o percurso entre minha casa e o meu local de trabalho, os quais são bastante próximos, nossa personagem parou junto ao ponto de ônibus, no momento em que  justamente parava  a linha de nº 12, sentido Sta. Bárbara - CSBM.
    E não é que a "mocinha" entrou nele? Dei uma leve risada e pensei comigo: Forrozeira. rsrsrs"
    No outro dia, triste notícia:
    "Uma senhora foi atropelada na av. Wilson Alvarenga, próximo ao posto Barrocar. Identificada como fulana de tal, mais conhecida como D. Marieta (...)"
    Nossa! Foi como um balde de água fria.
Como assim? Pensei.
    Naquele dia, o dia realmente me pareceu cinza...
    Impressionante como nós seres humanos somos né?! Infelizmente aprendemos uma cultura de valorizar mortos, e nos esquecermos dos vivos... Ou somos todos, sem exceção, talvez egoístas ou distraídos demais, para interpretarmos e entendermos realmente  a famosa frase: " A morte de alguém nos diminui."?!
    Passaram-se os dias, as semanas, os meses...
    Não sei, mas sabe quando sente-se falta de alguém pelo simples fato de que esta pessoa tornava seu cotidiano mais agradável? Ainda que fosse uma pessoa aparentemente desconhecida, sem qualquer laço de parentesco?
    Após estes fatos, leitor, sempre me questiono:
    Onde estão nossas Marietas? Seria ela a única?
    Esta pergunta, levanta uma série de repostas, em sua maioria altamente subjetivas, como se espera de todas as respostas...
    Só sei que, ao fazer minha rota diária (casa-trabalho), como se por força do hábito ou mesmo um costume natural, fito por alguns segundos os pontos de ônibus e imaginariamente ainda consigo ver:
    "Ei moço? Tem uma latinha aí?"
    Dona Marieta ( à direita) com o prefeito Gustavo Prandini, poucos dias antes 
de nos deixar.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2° LUGAR - CONTOS - TÁ CAINDO FULÔ...DO CÉU TÁ CAINDO FULÔ


TÁ CAINDO FULÔ...DO CÉU TÁ CAINDO FULÔ
Maria Helena da Silva Campos Cruz


    Era um dia sombrio. Cinza.
    Eu com a dificuldade em caminhar pedi que me levassem até lá em cima, no Cemitério de Carneirinhos para um último adeus a uma pessoa que era um verdadeiro Patrimônio em nossa cidade que era Dona Tereza do Congado.
Coloquei-me à frente do portão e fiquei junto com outras pessoas aguardando a chegada do cortejo.
    Cheguei aqui, em Monlevade, em junho de 1976. Por vezes me sentia, por estar tão longe de minha família: abandonada, desanimada, perseguida, amuada ou humilhada em meu trabalho e uma vez me aconselharam a procurar por Dona Tereza para ela rezar para mim. Eu ia eu meio que acreditando/desacreditando. Só sei que saia de lá mais mais leve e restaurada. Sua casa me parecia um lugar muito especial, único. Quando pequenininha em São Mateus/ES tive a oportunidade de conhecer algumas pessoas maravilhosas que rezavam meus irmãos menores e, por vezes, à madrugada acordávamos com os tambores tocando, meu pai dizia que era Caxambu, desde então, isso me fascinava.
    Fiquei encantada quando vi um grupo de congado, pela primeira vez, indo para a igreja celebrar a festa de Nossa Senhora do Rosário.
    Sempre, portanto, admirei a cultura Africana com seus mistérios, tradições e rituais.
    O Congado era uma forma de respeitar e me reconhecer na maravilha dos espelhos, fitas, espadas, fardas, nas coroas de reis e rainhas, nas músicas e danças que mexiam com meus olhos e me levavam a viajar por mundos paralelos sem vontade de voltar. Estava envolvida com minhas lembranças e devaneios quando alguém me alertou. E apontando na Avenida Getúlio Vargas, na contramão, completamente tomada pelo congado, acredito que cerca de três grupos, evoluíam em homenagem à Rainha que retornava ao jardim das delícias. Descrever o que senti, impossível. À medida que o cortejo se aproximava as lágrimas suaves num misto de tristeza, transcedência, elevação, sabe lá, ia tomando conta de mim, que me envolvia cada vez mais com os sons e movimentos, parecendo que meu coração acompanhava o ritmo que se assenhoreava de mim.
    Desde o comércio do "Pedro Machado" já se entendia o que cantavam " Tá caindo Fulô"...
    O cortejo chegou com centenas de pessoas. O céu permanecia nublado e fazia um pouco de calor.
    Na entrada do cemitério, como de costume, a urna foi depositada e aberta para um derradeiro adeus. Aí aconteceu algo que poucos perceberam e que a mim me marcou para sempre.
    "A Guarda de Marujos (marujada) cantava e dançava:
                                           Tá caindo fulô, eh eh
                                           Tá caindo fulo, eh ah
                                           Lá do céu, cai na terra, eh
                                           Tá caindo fulô."
    Por um instante singular as nuvens se abriram, só uma brechinha de nada e deixaram escapar, timidamente, um raio de luz que repousou sobre o rosto de dona Tereza, a emoção que eu já sentia, explodiu!
    Confesso que chorei.
    Chorei como gente grande, com soluços e tudo a ponto de ser consolada.
    A música continuava:
                                     " Tá caindo fulo, eh eh
                                       Tá caindo fulo, eh ah
                     Lá do céu, cai na terra, eh
                     Tá caindo fulo"...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PRIMEIRO LUGAR - CATEGORIA CONTOS - A VILA TECIDA EM PERSONAGENS


A VILA TECIDA EM PERSONAGENS
Marcelo Manuel de Melo

Era madrugada de inverno. Naquela época, fim dos anos 1950, a maioria dos bebês nascia das mãos das parteiras. Minha geração veio daquela senhora que morava vizinha, no bairro Areia Preta, chamada Carmem, um nome forte: dona "Carmem Parteira". Na casa simples da esquina entre a Contorno e a rua 10. Bairro Vila Tanque. A Vila dos Operários. Meu pai, metalúrgico da Usina da Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira. Minha mãe, além de dona de casa, tinha uma pequena máquina que cobria botões e lembro, ainda menino, das várias "madames" da avenida Aeroporto que iam lá em casa, levando lindos vestidos, para que fossem colocados os botões. Era um tempo onde era pública a divisão de classes sociais, entre a chefia e os operários comuns. No Social Clube, por exemplo, só entravam os "gringos". Preto, nem pensar!   E ali cresci, junto aos meus pais e meus irmãos. Pouco antes de completar sete anos e ingressar na 1ª escola - Eugênia Scharlé (nome de uma das madames e esposa de um chefão da Usina), meu pai conseguiu uma casa maior. Naquele período a Usina iniciava a sua política de dar fim ao paternalismo implantado desde a instalação da Belgo-Mineira em João Monlevade, ou seja, tornar o seu operário parte da sociedade e não da Usina. As casas eram vendidas em largas parcelas aos empregados e assim era rompido o primeiro laço umbilical. A nova morada era a parte baixa do bairro, à rua 25. E ali começava uma nova escalada, sem imaginar que a Vila, nascida de um tanque localizado à rua do "Sapo" (21), teria uma cumplicidade tão intensa na vida deste escrevinhador.   O Vila Tanque se tornaria um símbolo e a cada esquina ele tecia os seus personagens. Como naquela música "Na Asa do Vento", de autoria de João do Vale e que se eternizou na voz de Caetano Veloso: "a aranha tece puxando o fio da teia, a ciência da abeia, da aranha e a minha, muita gente desconhece"... Era como se a Vila fosse única, entre seus habitantes e suas moradas de alvenaria e madeira. E seus personagens sendo tecidos artesanalmente. E eu, olhar de menino, orgulhava-me por conviver com aquelas pessoas, folclóricas. Importantes, cada qual ao seu estilo e às suas raízes. Um universo novo. Um deles marcou a minha adolescência. Era o velho "Zé Liga". Todos o conheciam assim. O personagem da Contorno com a rua 11, artista/criador do "Grêmio Recreativo Escola de Samba Estrela da Vila". E sua obra o imortalizou. Quando a Estrela da Vila passava pelas estreitas ruas da Vila, parávamos com um olhar meio assustado e outro meio emocionado. As fantasias e o famoso "índio" puxando a bateria. Como diria Chico Buarque "vai passar pela avenida um samba popular. Cada paralelepípedo dessa velha cidade hoje vai se arrepiar"... E a Estrela fazia tremer as ruas da Vila. Um botijão de gás tocado como se fosse um surdo de metal e à frente desfilava Zé Liga, homem alegre e gordo, como o rei daquela festa encantada.   E, entre tantos outros personagens da Vila, retornei à minha infância e vi duas senhoras. A primeira era a baixinha, de cabelos sempre presos, que descia lá do alto da Contorno para ir à minha casa prosear com Dona Geralda. Era Dona Joaquina. Uma velha alegre, comunicativa. Uma simplicidade de gente do interior, mas de grande sabedoria. E a teia ia se formando.  A outra, Dona Adelina, minha querida madrinha, esposa do "Padrin" Narciso, bombeiro do Hospital Margarida. Ninguém cozinhava como ela. Qualquer coisa que aquela mestiça colocava no fogo se transformava em manjar. Que fossem arroz e feijão, mas tinha um sabor de fogão à lenha, um tempero apimentado. E comia com as mãos, o velho "capitão". A vida ia tecendo os personagens da história.  Dali, do alpendre da casa da rua 25, de frente para os eucaliptos, começo minha viagem pelo Campin Pereira. Depois, pelo campo da Lenheira, do caminho da Sonda, da esquina da 22, do Polivalente, do campo de Aviação, da Escola de Admissão de Dona Petiche, do Atletic de Zezinho, do Vila Nova de Zé Soldado, da barbearia do Senhor Bramante, do velho Palanque, de Padre Hildebrando, das Casas Sampaio e Pessoa, de Dilcim Doido, do Bar do Alonso, de Zim Navaia, do bar de Dona Nenén e Seu Altivo, de Tatu e Testão, do Recreativo e das horas-dançantes, do táxi de Manoel Paciência, do caminho da Sinterização e dos boieiros que desciam para levar as marmitas aos operários da Usina.  Cresci, tornei-me moço grande e as calças curtas ficaram para trás. Mas permanece essa cumplicidade entre a Vila Tanque e o escrevinhador, cujas retas são paralelas, mas que se curvam ao final.