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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PRIMEIRO LUGAR - CATEGORIA CONTOS - A VILA TECIDA EM PERSONAGENS


A VILA TECIDA EM PERSONAGENS
Marcelo Manuel de Melo

Era madrugada de inverno. Naquela época, fim dos anos 1950, a maioria dos bebês nascia das mãos das parteiras. Minha geração veio daquela senhora que morava vizinha, no bairro Areia Preta, chamada Carmem, um nome forte: dona "Carmem Parteira". Na casa simples da esquina entre a Contorno e a rua 10. Bairro Vila Tanque. A Vila dos Operários. Meu pai, metalúrgico da Usina da Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira. Minha mãe, além de dona de casa, tinha uma pequena máquina que cobria botões e lembro, ainda menino, das várias "madames" da avenida Aeroporto que iam lá em casa, levando lindos vestidos, para que fossem colocados os botões. Era um tempo onde era pública a divisão de classes sociais, entre a chefia e os operários comuns. No Social Clube, por exemplo, só entravam os "gringos". Preto, nem pensar!   E ali cresci, junto aos meus pais e meus irmãos. Pouco antes de completar sete anos e ingressar na 1ª escola - Eugênia Scharlé (nome de uma das madames e esposa de um chefão da Usina), meu pai conseguiu uma casa maior. Naquele período a Usina iniciava a sua política de dar fim ao paternalismo implantado desde a instalação da Belgo-Mineira em João Monlevade, ou seja, tornar o seu operário parte da sociedade e não da Usina. As casas eram vendidas em largas parcelas aos empregados e assim era rompido o primeiro laço umbilical. A nova morada era a parte baixa do bairro, à rua 25. E ali começava uma nova escalada, sem imaginar que a Vila, nascida de um tanque localizado à rua do "Sapo" (21), teria uma cumplicidade tão intensa na vida deste escrevinhador.   O Vila Tanque se tornaria um símbolo e a cada esquina ele tecia os seus personagens. Como naquela música "Na Asa do Vento", de autoria de João do Vale e que se eternizou na voz de Caetano Veloso: "a aranha tece puxando o fio da teia, a ciência da abeia, da aranha e a minha, muita gente desconhece"... Era como se a Vila fosse única, entre seus habitantes e suas moradas de alvenaria e madeira. E seus personagens sendo tecidos artesanalmente. E eu, olhar de menino, orgulhava-me por conviver com aquelas pessoas, folclóricas. Importantes, cada qual ao seu estilo e às suas raízes. Um universo novo. Um deles marcou a minha adolescência. Era o velho "Zé Liga". Todos o conheciam assim. O personagem da Contorno com a rua 11, artista/criador do "Grêmio Recreativo Escola de Samba Estrela da Vila". E sua obra o imortalizou. Quando a Estrela da Vila passava pelas estreitas ruas da Vila, parávamos com um olhar meio assustado e outro meio emocionado. As fantasias e o famoso "índio" puxando a bateria. Como diria Chico Buarque "vai passar pela avenida um samba popular. Cada paralelepípedo dessa velha cidade hoje vai se arrepiar"... E a Estrela fazia tremer as ruas da Vila. Um botijão de gás tocado como se fosse um surdo de metal e à frente desfilava Zé Liga, homem alegre e gordo, como o rei daquela festa encantada.   E, entre tantos outros personagens da Vila, retornei à minha infância e vi duas senhoras. A primeira era a baixinha, de cabelos sempre presos, que descia lá do alto da Contorno para ir à minha casa prosear com Dona Geralda. Era Dona Joaquina. Uma velha alegre, comunicativa. Uma simplicidade de gente do interior, mas de grande sabedoria. E a teia ia se formando.  A outra, Dona Adelina, minha querida madrinha, esposa do "Padrin" Narciso, bombeiro do Hospital Margarida. Ninguém cozinhava como ela. Qualquer coisa que aquela mestiça colocava no fogo se transformava em manjar. Que fossem arroz e feijão, mas tinha um sabor de fogão à lenha, um tempero apimentado. E comia com as mãos, o velho "capitão". A vida ia tecendo os personagens da história.  Dali, do alpendre da casa da rua 25, de frente para os eucaliptos, começo minha viagem pelo Campin Pereira. Depois, pelo campo da Lenheira, do caminho da Sonda, da esquina da 22, do Polivalente, do campo de Aviação, da Escola de Admissão de Dona Petiche, do Atletic de Zezinho, do Vila Nova de Zé Soldado, da barbearia do Senhor Bramante, do velho Palanque, de Padre Hildebrando, das Casas Sampaio e Pessoa, de Dilcim Doido, do Bar do Alonso, de Zim Navaia, do bar de Dona Nenén e Seu Altivo, de Tatu e Testão, do Recreativo e das horas-dançantes, do táxi de Manoel Paciência, do caminho da Sinterização e dos boieiros que desciam para levar as marmitas aos operários da Usina.  Cresci, tornei-me moço grande e as calças curtas ficaram para trás. Mas permanece essa cumplicidade entre a Vila Tanque e o escrevinhador, cujas retas são paralelas, mas que se curvam ao final.

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