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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A importância dos burros no cotidiano de Monlevade, em particular, a do chamado burro do Geo

Pessoal, trata-se do Capítulo 19  do livro Bazar Monlevade, do escritor Jairo de Souza, mais um "Valor da nossa gente". Boa leitura!

À partir destas linhas, peço uma especial atenção e mais vagar no revirar das folhas desses escritos. O leitor sabe que não vai encontrar diante dos seus olhos nenhum tipo de leitura que denuncie ser do gênero de fábula infantil. Não é nosso objetivo literário. Em nenhum momento anterior foi dada liberdade de voz a cavalo, Passarinho, andorinha, pato, cabrito, piaba, lambari…No entanto quem pode se esquecer do esforçado Burro do Geo? Senhores, por poucos momentos, a palavra fica, e durante todo o próximo parágrafo, a cargo do símbolo do trabalho físico monlevadense de algumas décadas atrás. O armazém do meu patrão ficava bem no meio da ladeira, lado esquerdo de uma carroça que sobe. Às suas costas a popular Praça do Mercado. Do lado direito via-se o imponente muro do Grupo Escolar que servia como contenção de enorme barranco. Lá se estuda para não ficar um burro como eu. Ambos, o armazém e o Grupo, ficavam na rua bem calçada que dava acesso à praça do cine Monlevade, a ladeira que disse. Nela, fosse eu seguindo até o ponto mais alto, entenda-se, onde ficava plana, estaria praticamente na Praça do Cinema. Que ficava logo à direita. Caso tivesse picado a mula, e prosseguido em linha reta daria com o cabresto na portaria principal da usina da Belgo-Mineira… Onde algum chapa aliviaria o meu lombo... Mas... Isso fica para depois, e para o memorialista que vos escreve… A ele, passo novamente o bastão. Jairo Martins de Souza Sim. E retorno dizendo novo elogio a você, seu burro! Poisnão somente em Monlevade como também em todo mundo, Vossas Senhorias, segundo os portugueses, eram os melhores topó- grafos e projetistas de estradas de rodagem. Manuel, solte aquele animal… Permita que faça a marcação da trilha com seus cascos,  e que determine, com sua intuição, o melhor ângulo de esforço para fazermos o traçado dessa lombada que fará parte da futura Monlevade a Belo Horizonte.Tempo distante em que o homem apreciava a inteligência dos burros: já estiveram em alto patamar da vida nacional. Conduziam as delícias do século dezoito. O Brasil recorda com saudade da carne salgada, o charque, trazida do Sul no tempo de Vila Rica. Não faz mal homenageá-los, e aos tropeiros, na figura doanimal monlevadense que há pouco esteve dando seu parecer sobre morro tradicional. Animal símbolo. Nosso el condor! Laborioso, o burro do Geo caminha por cada rua calçada, e cada beco de sua cidade. Conhece o ofício. Para tanto, oscilando a cabeça para cima e para baixo, busca força complementarpara tração das cargas encomendadas ao patrão. Está de saída encarando o morro que, forçosamente, terá que subir. Preocupado vê que ultimamente vem perdendo espaço para a força do progresso, cresce o número de caminhonetes postas a carreto em Monlevade. O pensamento não o aborrece por completo, poisconclui que tem vantagens para quem o emprega. Encara suas obrigações como se fosse uma missão. Faço tudo que me pedem a troco do pão e estou satisfeito, diz o burro. Confirmando a sua fala, faz um balanço de rabo. Como um cachorro.Ou como um padre que se alimenta das cortesias e oferendas alimentares dos seus fiéis: uma trança de lingüiça aqui, uma goiabada ali. Para o trabalho, e a vida, ambos carecem de alimento. O seu combustível. O burro, tal como o homem, é movido a combustão da sua máquina que arfa, e sua, e diz como o carroceiro que o conduz, p. que o pariu, essa carroça não anda! Com tamanho esforço, logo encontra o final do morro que o conduzirá à Praça do Cinema. A do cine Monlevade. Posto de lado pela natureza e pela evolução, o animal não teve a experiência com a sétima arte como ainda por ser descrita nesses escritos. Como também o refletir sobre a geometria das pedras do calçamento, ou imaginar novas equações para explicar o enigma das relações do número de ouro; enfim, coisas ligadas às proporções de Fibonacci. Andou, assanhado, falando nessas memórias... Mas é um simples burro... Que puxava na canga os mantimentos que o patrão tinha para fornecer aos moradores da cidade siderúrgica de João Monlevade. Entregamos em domicílio, não pode ficar de fora a Vila Tanque, ou a Rua da Favela, que é o foco das vossas atenções; é o que diz cerimoniosamente o seu proprietário. O meu empregado faz seu trabalho de formaexemplar. Como se fosse um carteiro que nunca desanima na entrega de uma carta de amor. Orgulhoso, complementa, é um funcionário padrão! Nem sempre foi assim, sou eu agora quem se pronuncia, em séculos passados não tinham tantas funções, embaraços e cangas. Desde criança podia vê-los em alguns presépios ou mesmo em quadros pintados durante a idade média, e que mostram, com graça e singela beleza, o nascimento do salvador. Das que vi, lá está o burrico observando, sossegado, o menino Jesus que dorme na rudimentar manjedoura. Mas pode ser que, depois disso, mais exatamente 33 anos, tenha ele, já mais velho, ou mesmo alguns dos seus descendentes mais burros que ele, sabe-se lá, filhos ou netos, tenham atirado pedras na cruz. Daí todos esses sofrimentos e cargas a conduzir nos dias de hoje. Não nos diz o Velho Testamento que a família paga por nossos pecados durante gerações e gerações? Fazia ainda dia escuro e já trabalhava. Vai devagar e, como é próprio da raça, empurrado pelos xingos do homem contratado: ‘vai burro, filho de uma égua!’. Mas tinha pai, não fora achado em lata de lixo. Pai que talvez tenha sido ajudado por mãos humanas na guia certa do seu bem dotado membro: não sei ao certo, o pai é um jumento de pasto vizinho ao que a mãe comia capim (ai, que coisas temos que aqui escrever!). Apesar disso, nada mais adequado que os xingos acima para trazer esse obreiro às lides do 130 Jairo Martins de Souza labor com entusiasmo. Faz mexer brios. Lembro que é proibido citar o nome da mãe de terceiros aqui na Vila Tanque: mesmo que seja de um burro. O condutor, consciente disso, tenta fazer outro tipo de incentivo ao trabalho e, assobiando, diz coisas que o animal entende. Com uma das mãos chicoteia o ar repetidas vezes e com os pés empurra o traseiro do bicho que sobressai entre couros e cordas de amarração. Os clássicos efeitos sonoros viajam pelos caminhos da cidade, tornando-se mais intensos na subida em curva do morro do tradicional armazém: as laterais muradas propiciam a formação de canal  de eco e de som que vão longe.Por final, recordo que a missão do tal burro não é novidade para nenhum dos nossos conterrâneos antigos. Todos o conhecem! Basta-nos recordar ser o protagonista de um ditado que ficou na história da cidade: “fulano trabalha muito, trabalha que nem o burro do Geo”. Foi uma verdadeira instituição local. Um monlevadense, há pouco saído dos solos da terra, disse-me: temos mesmo um jornal que se publica na cidade, chama-se Morro do Geo. Pensei comigo mesmo: bonito! Mas faltou fazer justiça ao burro... 

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