Crônica classificada em 1º Lugar no II Concurso Literário
"Prêmio Valores da Nossa Gente".
“Era dia quando a noite me pegou de surpresa”
Marcelo Manuel de Melo
Nem
havia ainda chegado o dia de vir ao mundo. Mas dentro de um ventre estava
inquieto, como se querendo romper as barreiras naturais do parto e surgir em dias. Mas a calma de
minha mãe era paciente e sua barriga crescia, como qualquer negra ou branca,
prenha. E surgia na casa de alpendre vermelho, de azul nas janelas, mais um
arrebento cujo cordão era cortado pela parteira, que subia do Areia Preta até a
velha Vila Tanque. Comunhões eram oficializadas e se tornavam sagradas.
E
era manhã quando, pela primeira vez, entrei em uma lotação que descia a
Contorno, cujo ponto era um pedaço de madeira, com letras verticais onde se lia
“Ponto”. Nem conhecia bem as palavras! E, de mãos dadas com minha mãe, sempre
paciente, descíamos para a feira, atrás do Geo, de frente para o seu morro.
Afinal, tratavam-no como “Morro do Geo”. Era o proprietário. Vislumbrei-me com
aquela correria, desde a subida, como se estivesse entrando em terras
estranhas. Uma rua funcionava um enorme mercado. Novo para entender aquilo
tudo, minha mãe relatava a sua história e contava os causos dos personagens
daquele enorme conglomerado de gente. E de cada porta por onde entravam e saiam
tantas pessoas... Cresci com aquilo ao meu redor. E vivi cada manhã,
semanalmente, desde a lotação que passava em frente à minha casa de alpendre
vermelhão, subindo os degraus do coletivo – já sem as mãos dadas com minha mãe
– até descer no “Ponto” da Leiteria.
Chegava
e já era dia. Entrava por aquele imenso mercado. Quase todos caminhavam pela
rua de calçamento. O passeio era pouco usado. Também trânsito ali era coisa que
não preocupava muito. Podíamos atravessar sem muita pressa e sem medo, da
Farmácia de Seu Juventino Caldeira até o outro lado, na Cobal. Bom parar ali e
prosear com ele, o farmacêutico/político. Sempre sorridente. E o “Sô” José
Braz, da famosa Casa Braz. Ou ainda a Casas Maluf, da simpática Dona Farid.
Tudo levava o nome de “Casa”, ou o singular no plural, como a Casas Jaime. Ah,
e as Casas Lotéricas, do JG. Para um pouco variar, o Bar Primavera. Mas nada
que fugisse à regra. Afinal ainda faziam parte do Complexo a Casa do Pescador e
a Casa do “João Gordo”. Será que era falta de criatividade ou costume mesmo?
Uma cidade começando a surgir dentro das montanhas de Minas e sua pacata Vila
Operária “quanto mais simples, melhor”... Talvez explicasse tantos homônimos.
Havia
ainda o “andar de cima”, da Granja e da Delegacia de Polícia. E sempre alerta o
Soldado Paixão. Tudo mágico, como o caixeiro viajante que ficava na entrada, à
entrada do Mercado. Pertinho dali um artista, o “anfitrião” da praça, Seu
Enéias, vendedor de amendoins, que atraia os fregueses tocando a sua flauta
transversal, doce, como fazendo poesia. Negro, altivo e bonito. Simples.
Praça
do Mercado, o meu caminho desde os tempos das matinês no Cine Monlevade.
Domingos, às 10 da manhã, assistindo o mascarado Zorro e à “dupla dinâmica”,
Batman e Robin. Nem imaginávamos, em nossa infância e ingenuidade, que ali já
se prenunciava uma relação entre pessoas do mesmo sexo. E nem que o simples ato
de levar pipoca para dentro do escuro do cinema já fazia parte de outro enredo.
Duca Pinduca, o “ladrão de açúcar”. Geraldo moleza conduzindo sua lotação, que
saia da praça – em frente à Assistência Médica -, até a velha Vila. Entre a
arquitetura em estilo neo-clássico. Do banheiro público à farmácia de Seu
Vicente. E as ruas brotadas pelas origens indígenas da Tupis, Tabajaras,
Guaranis... E a Cidade-Alta!
Mas
eis que o dia desaparece e a noite me pega de surpresa. Os anos 1980 ficariam
marcados para sempre como a “Década da Destruição”. Do Grêmio ao Ideal dos
ideais progressistas. Do União Operário e do Bar do Bené, do Bar de Seu Simões
e do Bar Para Todos. Pois todos éramos nós, que perderíamos a nossa identidade
e a nossa cidadania como cidadãos de uma cidade.
E
também a minha mãe, Dona Geralda, que viajou e se juntou às estrelas. Mas
deixou como herança a sua sabedoria e a sua força. E a sua fé. Entre a Praça do
Mercado até o Morro do Geo. Parada na Praça do Cinema, quase em frente à
Portaria-1 da usina da Belgo-Mineira. Tudo sucumbiu. E sem projetos, perdemos a
ilusão do exemplo da Ave Fênix. Pois nada ressurgirá das cinzas.
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